30.5.07

À porta do prédio ouvia-se já a máquina a trabalhar, como que a coser o fresco do átrio à expectativa do vestido novo, os pontos da agulha sentidos nas escadas de madeira galgadas a correr até ao primeiro andar. O tecido comprado noutro país, noutros tempos. Protegido por papel de seda branco já amarelecido que se revelou intacto onde se sobrepunham as dobras para encerrar o embrulho; aberto uns dias antes, lentamente, a conceder um aroma estranho à história contada e à colcha da cama, impregnando-as para sempre naquele irrelevante fragmento de tempo que perduraria até depois da infância, numa fotografia que seria tirada três dias depois. Flores azuis num fundo branco. Um folho, tal como tinha pedido. Acordou durante a noite, ansiosa. Apenas um único corpo deitado na cama da mãe. Amanhã iria tocar o telefone para descerem as duas. Uma não regressaria a casa até anoitecer. Outra sentar-se-ia perto da janela durante horas, a apagar presságios do que poderia correr mal. A querê-la de volta mais cedo.
Desceram minutos depois de desligar o telefone.
- Prometo que te acabo o vestido hoje. Diverte-te querida.
Dentro do Mercedes novo respirava-se quase apenas perfume.
- Aceita a bolacha que a Ofélia te dá, não sejas malcriada. Está melhor a tua avó?
- Sim, está no sofá.
- Esta miúda tem cada uma. Olha lá os pés no banco! Já não está no hospital a tua avó?
- Não, está no sofá.
- Vou levá-la ao médico, pá. Só a mãe é que não vê que a miúda não tem a cabeça assente na terra.
- Não me apetece a bolacha, desculpe Ofélia.
- Come a bolacha que a Ofélia te deu. Comprou-as para ti.
Então não dizes nada do carro? Não gostas?
- Estou um bocadinho mal disposta.
- Põe o cinto, pá. Estás doente? Se calhar está doente. Já comeste alguma coisa hoje? Se calhar ainda nem deu nada à miúda para comer. Vamos ali comprar um iogurte.
- Já comi, obrigada. Estou mal disposta.
- Estás mal disposta...O teu primo Rodolfo recebeu um prémio por ser tão bom aluno. Vês?
- Ele não é meu primo.
- Tas mesmo malcriada, hã? Deve ser lá das companhias da tua mãe. Não é teu primo porquê? A tua mãe além de fufa ainda te põe porcarias na cabeça? Esta é a tua família. Ai a porra. Vá. Olha lá os pés! Tas a chorar porquê?
Vá... Tens fome? Vou parar aqui. Vai lá buscar um iogurte para a miúda.
- Não quero, obrigada. Não quero comer. Estou mal disposta.
- Ai a porra. Vai lá buscar o iogurte, Ofélia! Estou aqui parado porquê?
- A miúda diz que não quer. Se ela não quer...
- Ela sabe lá. Vai lá porra! Estou mal parado. Olha a porta, pá!
Tiveste boas notas?
- Sim.
- Tiveste boas notas? O teu primo foi o melhor da escola.
Lá a amiga da tua mãe quis que passasses da segunda para a quarta, mas a tua mãe não quis... nem perguntou nada a ninguém. Essa também é uma delas, essa directora. Enfim...
- Tiveste boas notas? Não tens a quem sair burra, minha filha.
Tanto tempo, Ofélia. O que tiveste lá a fazer? Anda, entra lá que já é tarde, pá.
- Não podia passar à frente das pessoas.
- Não batas com a porta, porra!
A tua avó está lá a dormir no sofá, é?
- Não, está só sentada.
- Estás a desdenhar a atenção que as pessoas estão a ter contigo? Nunca te faças de parva. Não és burra nenhuma! Nunca te faças passar por burra. Nem faças dos outros parvos. Ainda te falta crescer muito, minha filha. Tens muito que aprender. Ai...
E a tua mãe já está a trabalhar?
- Sim.
- Ai sim? Pois... imagino...ela tem muitos conhecimentos...
E a casa nova? Ainda hão-de exigir-me que pague a renda. Têm a mania das grandezas, depois olha.
- A casa é bonita. A vizinha tem um cão. Damos-lhe bolachas que a mãe comprou.
- Nem convidaram para ver casa nenhuma. Devem ter convidado outras pessoas...Ainda apanhas uma doença por causa do cão. Ai a tua mãe tem dinheiro para andar a comprar bolachas de cão? E tu se calhar nem comeste nada ainda. Tens comido legumes?
- Comi muito. A mãe dá-me muitos legumes.
- Ofélia dá o iogurte à miúda.
- Eu não quero, obrigada. Eu estou mal disposta. Podes parar?
- Ai a porra! Aonde é que eu vou parar o carro agora! Tas mal disposta porquê?
Mas que...! Vê lá se a miúda tem febre? Vens toda à fresca. A tua mãe devia ter-te vestido uma coisa mais quente.
- Eu não tenho frio. Quero vomitar.
- Oh que porra! Paramos aqui na bomba, se este cabrão me deixar passar.
- A miúda não tem febre.
- A mãe quis que eu trouxesse outro casaco, mas eu é que não quis.
- Vai lá com a miúda à casa de banho.
- Anda querida. A Ofélia vai contigo. É bonita a tua casa?
-Quero vomitar. Eu vou sozinha.
- A Ofélia vai contigo. Ofélia, vê lá se há para aí um casaco ou uma camisola à venda.
- Aqui? Aqui na bomba não se vendem essas coisas.
- Vê lá, pá, estou a pedir-te. E vai lá com a miúda.
Não sejas malcriada!
- Anda querida, a Ofélia vai contigo.
- Não, quero ir sozinha, obrigada. E não preciso de nenhuma camisola.
- Então vai lá. A Ofélia está aqui fora.
- Ofélia! Vomitou, ela?
- Acho que sim.
- Achas que sim? Então não foste com ela?
- Fui. Mas ela não quis que eu entrasse.
- Não quiseste porquê? És malcriada? Não vês que as pessoas querem ajudar-te? Tens o nariz muito levantado, tu...tens, tens. Não quiseste porquê? Tens alguma coisa contra a Ofélia?
- A miúda não quis, não ia entrar à força.
- A miúda sabe lá o que quer. Ainda tens muito que crescer, minha filha, até fazeres o que te apetece. Ai...
Vomitaste? Deves ter comido porcarias. O que é que comeste ao pequeno-almoço? Alguma porcaria! Bebeste leite, ao menos?
- Sim. E comi pão e queijo.
- Queres um sumo? Dá aí um sumo à miúda. Mas não comeste fruta.
- Não quero, obrigada.
- Mas não queres nada porquê? Estás armada em malcriada? Recusas tudo o que te dão, é?
- Mas eu vomitei...
- Vomitaste...ainda gostava de saber porquê. Que porcarias é que comeste? Ontem jantaste o quê? Hambúrguer?
- Não, peixe. Com brócolos e cenoura.
- E então a tua casa nova é bonita?
- Para que é que queres saber se a casa da miúda é bonita, Ofélia? Também queres uma casa nova, é?
- É uma pergunta como outra qualquer. Estou só a falar com a miúda.
- Sim, é bonita. A Mi está a fazer-me um vestido.
- Então agora tratas a tua mãe pelo nome? Mas que raio de ideia é essa? A tua mãe dá-te umas liberdades muito estranhas.
...Ah, sim? Ela tem jeito para isso, lá para a costura.
- A minha mãe não disse nada. Eu é que lhe chamo Mi.
- Minha mãe? Porque dizes minha mãe? Sei bem que é tua mãe! Não estamos a falar da mãe de mais ninguém. Ai...para que é o minha mãe.
Julgas que as pessoas são parvas? Julgas que não entendem? Ai...porra para isto. ...Vamos ai a um sítio qualquer comparar um casaco, ou uma coisa qualquer.
- Não é preciso, obrigada. Eu não tenho frio. Eu tenho muitos casacos. A mãe comprou-me dois casacos novos.
- Eu é que sei se é preciso, não és tu! Não respondas! Comprou-te casacos novos? Ainda bem que estão ricas. Vamos lá comprar uma roupa quente. E umas botas. Andas para aí com os pés quase descalços.
- Mas não está frio. Foi a minha prima que me comprou as sabrinas. E o vestido.
- Eu não preciso que te comprem nada. Essa gente...é uma puta, essa também.
- Foi a mãe que lhe deu dinheiro para ela ir às compras comigo...
- Estás a responder-me, é? Ainda bem que a tua bem está rica e não precisa de nada. Se calhar foi alguma das amigas que lhe arranjou o trabalho. Se a calhar foi essa cabra da tua tia.
- Não digas mal da minha mãe! ...Nem da minha tia!
- Estás a gritar? Ai a merda...está calada e não me respondas! Malcriada. Sabes o que é que essa fufa da tua tia fez? Não fales sem saber...ela e a tua mãe. Um dia conto-te, minha filha... Não me levantes a voz. Só eu é que sei! Além de fufa é uma filha da puta.
- Vá, acalma-te. Estás muito enervado. Olha que a miúda está a chorar.
- Vai mandar acalmar...estou enervado estou. Só eu é que sei...
- Vá, querida, toma um lenço que a Ofélia tem aqui. O pai está enervado, vá.
- Estou enervado, estou. Que porra esta... Venho buscá-la, pago-lhe o colégio, as roupas...ainda hão de querer vir buscar mais dinheiro. Os favores das amigas e dos amigos não devem chegar.
- Ai...vá...estás a chorar porquê? Vá, estacionamos aqui e vamos comprar uma camisola e umas calças para a miúda. O vestido que te dei no ano passado já não te serve? Já não deve servir...o da prima deve ser melhor... olha que não, minha filha. De certeza que ela não to foi comprar onde comprámos o outro. De certeza que não custou a mesma coisa.
...Quem é que te deu essa mala?
- Foi a tia.
- Ah, sim?...Filha da puta. Para que é que trouxeste essa mala? Fizeste de propósito, tu. Mas que porra...fufas e putas. Anda lá, pá. A Ofélia já desapareceu. Onde é que se enfiou? Mas que porra...
Anda lá, pá. Despacha-te. Ofélia! Estás com pressa, é?
Vamos comer primeiro. Entramos já neste.
- Já sabes que o papá ganhou um prémio?
- Ela quer lá saber...Mas devias de querer, minha filha, para saberes que não descendes de gente burra. Devias de te aplicar nos estudos e seguir ciências, porque se o teu pai tem cabeça para isso tu também tens. Não tens razão nenhuma para seres burra. A tua mãe, apesar de tudo, também não o é. Por isso tu só podes ser inteligente. Vê se trabalhas. Tiveste boas notas?
- Sim.
- Vá, chama lá o empregado. O que é que vais comer?
- Eu estou mal disposta.
- Mas que porra! Maldisposta porquê? Não estás bem ao pé das pessoas?
Vais comer peixe, então. Se estás maldisposta, não te faz mal nenhum.
Vais comer a vitela, Ofélia? Então eu como isso contigo, quero lá saber. Como uma coisa qualquer.

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