27.4.07


III
Do sorriso da avó reluz um dente de ouro, amarelo saudoso como a luz das janelas. Uma recordação que prendeu à boca, perto do som que enternece as palavras ditas todos os dias e dos beijos. Começa a contar até 12, baixinho, mas apressa os números a partir do 5, para que tudo se antecipe como nos filmes projectados ao domingo quando, por engano, a fita anda para a frente com mais velocidade. A mãe corre de um lado para o outro no quarto, à procura dos sapatos, como todos sábados. O F... está acordado a somar pelos dedos as horas até amanhã às 8 e conta até 12 ao mesmo tempo que a avó (sem saber, mas ela sabe). E os números entrelaçam-se com o ruído dos bichos da madeira e as tábuas a ranger e a valsa fora de tempo da concertina e do violoncelo. Todos suspiram em ritmo acelerado. O pai também, enquanto recorta partituras. O vento faz encher e desencher as roupas que secam às janelas e assobia nos espanta espíritos feitos de papel de música. E junta-se ao som dos bichos da madeira, das tábuas a ranger, à valsa da concertina e do violoncelo.
Até que a avó e o F... chegam ao 12. Todos suspiram e voltam ao tempo certo. Quase adágio, sussurra a avó. Cai um bocadinho de nuvem sobre o telhado e o gato salta e aninha-se no fato das fotografias. Batem à porta, como é habitual todos os serões.

Boa noite Luzirna.
Boa noite Ulmerno.
Esqueci-me do raminho.
Era de quê?
Tanto fazia. De dois dedos.
De quê?
De conversa.

A valsa continua. Doce. Anoiteceu tarde porque é Verão.
Bem-vindos à Vila Triste dos Pinga-amores.

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